Arroz no chão com indícios de pensamentos intrusivos
Bastou um leve esbarrão pra Rachel ver em câmera lenta a panela de arroz amassar no chão. Arroz da janta de domingo e, pra completar, parte da marmita. E lá vieram em fila seus pensamentos:
– Você é lerda e não presta pra nada, sua mãe tinha razão. Você não prestou nem pra tomar conta de sua irmã. Por isso que você apanhava toda vez que o feijão queimava. Nem pra passar numa faculdade pública você prestou, teve que trabalhar seis anos de balconista.
Rachel sentou no sofá, e o choro caiu forte. Lembrou de vários episódios dolorosos da infância e da vida. Lembrou-se também da última terapia. Foi aí que rebateu as vozes da sua cabeça:
– Dessa vez vocês não vão tomar conta de mim. A hipermetropia às vezes me causa esse problema, é normal às vezes derrubar coisas. Sei que não foi justo eu, enquanto criança, ter que cuidar de outra criança, e a infância já passou. Como poderia olhar o feijão no fogo, tomar conta de Clara e estudar ao mesmo tempo? Como pude passar tanto tempo sem óculos a ponto de perder de ano? Eu me orgulho de ter trabalhado numa loja pra pagar as contas e fazer faculdade. Olhem aqui, seus monstros, saiam da minha cabeça e só por hoje me deixem em paz!
Raquel limpou a cozinha e fez o arroz novamente. Bem temperado no alho, soltinho, ao dente, no ponto certo do sal. Resolveu jantar arroz puro, comendo com a colher de pau, sorrindo e falando sozinha: nunca mais volto pra aquele lugar. Sou uma boa mãe com filhos formados, fui uma boa filha e sei que sou uma boa profissional. Todos os dias eu me lembro das crianças adultas que passam por mim no shopping, me abraçam e dizem que eu fui a melhor professora que já tiveram. Eu sei quem sou, tenho certeza de quem sou!
Rachel chegou ao trabalho e soube que a escola estava sem energia elétrica. As crianças seriam liberadas logo após a merenda escolar. Ao entrar na sala, teve um estalo:
– Vamos todos em fila. Nossa aula será num lugar mais ventilado, o refeitório escolar. Vamos ficar sentadinhos para aprender como se faz macarrão com almôndegas!
Aprenderam que o macarrão é feito de trigo. Tia Rose, a cozinheira, mostrou como a massa é fervida com sal e escorrida. Que a almôndega é uma bolinha de carne moída e temperada. Aprenderam que almoçavam no horário do recreio porque nem toda criança tinha comida decente em casa. Aprenderam que a palavra bolinha tinha um dígrafo, que era quando duas letrinhas formavam apenas um som, a exemplo de ninho, casinha e passarinho.
A aula acabou, as mães chegaram, muitas insatisfeitas por terem que pegar os filhos mais cedo e não terem com quem deixá-los. Joaquina saiu tagarelando:
– Um beijo, pró! Essa foi a melhor aula da minha vida! Eu amo macarrão e agora já sei fazer! Mainha, deixa eu fazer macarrão quando a gente chegar em casa?
Rachel sentiu uma lágrima descer de novo e voltou a pensamentar: eu sei quem sou. Chupa, pensamento otário! Eu sei quem sou! Ofereceu sua marmita a tia Rose e se fartou de macarrão.
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Esta é uma história de ficção, mas bem que poderia ser verdade. Acompanhe os textos, músicas e vídeos da Fabuloso Cotidiano, uma criação de Bruno D’Almeida, onde pessoas simples fazem incríveis todos os dias. Participe da rede de apoio e contribua com a produção de material didático gratuito.
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