Diálogos com um gatinho felpudo entre suspiros na prisão

Bruno D’Almeida /Foto: Ethel Méndez Parry

– Mas você é muito fofoqueiro, viu, Vlad? Nunca vi um gato passar o dia inteiro na janela. O que você está conversando com Felipe aí do outro lado da tela de proteção?

– Ele está me explicando a diferença de sabor entre camundongos e passarinhos. Por que ele pode caçar, e eu não?

– Eca, que nojo!

– Você está aí temperando sobrecoxas de frangos esquartejados. Deixe de hipocrisia. Por que eu não posso sair?

– A mamãe dele deixa, eu não. Você corre o risco de pegar uma doença, te darem veneno e até ser levado por estranhos. Logo você, um gatão todo branco, felpudo com os olhos de cores diferentes, nunca mais volta pra casa…

– Mas aqui é pior, eu vivo numa prisão! Prefiro comer barata do que essa ração seca.

– Que nojo!

– Odete, você dá papinha de verdade a uma bebê reborn usando uma voz infantilizada. “Iti Malia, come tudinho, meu amô!”. Isso é ridículo, é macabro, é nojento.

– Vladimir Lênin, por que não vai brincar com Pandora?

– Ela quer brincar de guerra de morder. Eu adoro, eu me amarro, mas hoje tô a fim de pegar aqueles dois passarinhos ali.

– Nossa, que imagem linda! Deixa eu tirar uma foto.

– Eu sou puta, é, eu sou puta?

– O quê???

– Oxe, “eu, sou puta, é, eu sou puta?” é uma gíria de Salvador, que significa “Você acha que sou idiota?”, utilizada por qualquer pessoa que esteja passando por uma situação degradante. A senhora é professora, deveria se atualizar. Bata aqui, Felipinho.

– Não, não, não! Que coisa mais feia! Se ele continuar te ensinando essas coisas, não vou mais deixar vocês conversarem, viu, meu filho?

– Você já tirou a minha liberdade de sair, agora quer tirar minha liberdade de expressão? E eu não sou seu filho, sou um animal em cativeiro, e você não é minha mãe, você é minha tutora! Tu-to-ra!

– Está bem meu amor, vamos acabar com essa discussão. Vou te dar o patê de peixe que você gosta. Eita, Pandora, o que é que você está fazendo? deixa eu ver Pandora lá em cima, tá destruindo tudo.

– Aprendi a abrir a porta! Perdeu, tia Dete!

– Vladimir, meu Deus do céu, volte aqui, Vladimir!!!

Odete acordou com uma lambida no nariz. Era Pandora pedindo comida. Odete correu até a porta, que estava trancada. Retirou a chave e colocou no sutiã. Colocou dois pacotes de sachê nos potinhos e abriu a janela. Pandora comeu esbaforida. Vlad olhou para a comida, fez cara de nojo, pulou no batente da janela e ficou olhando entre as telas para dois passarinhos.

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Esta é uma história de ficção da Fabuloso Cotidiano, em que pessoas simples fazem coisas incríveis todos os dias. Uma criação de Bruno D’Almeida. Veja mais histórias em fabulosocotidiano.com.br.

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