Volta às aulas com murro na cara, glitter e olho roxo
Marina estava de óculos escuros abraçando todas as professoras da escola na volta às aulas. No último dia de trabalho antes do recesso de carnaval, há uma semana, ao separar uma briga de crianças da primeira série, Mari recebeu um cruzado de esquerda na cara. Miguel, que era autista, teve um ataque de fúria depois de ser alvo de risos e dedos apontados. Mesmo com o olho ficando inchado e roxo, Marina abraçou Miguel até que a criança se acalmasse, repetindo palavras de carinho.

Mari precisou de quase uma hora para convencer Márcia, a diretora, a suspender a suspensão de uma semana pronta pra entregar à familia da criança. Quando os pais de Miguel chegaram, outra romaria. Olavo estava furioso com o filho e lhe prometeu uma surra quando chegassem em casa. Marina aproveitou o momento e deu uma aula aos pais sobre autismo e deixou claro que bater não resolve.
Alguém filmou a agressão, e o vídeo viralizou. Influenciadores digitais começaram a opinar bobagens que iam desde “essas crianças merecem um corretivo como antigamente” a “como se vingar de um autista que já te agrediu”. Marina Santana tomou coragem, esboçou um roteiro no papel e postou um vídeo:
“Autismo é uma neurodivergência. Eles pensam de uma forma especial, em boa parte são muito inteligentes, às vezes acima da média. Por algumas razões, podem ficar muito irritados e até perder o controle. Meu aluno sofreu bullyng. Até pessoas ditas normais podem perder a cabeça nessa situação. Depois que ficou calmo, ele não parou de me abraçar. Ele só tem sete anos. Deixem minha ternurinha em paz, ele é um amor de pessoa. Vamos aproveitar o que aconteceu e pedir à Secretaria da Educação mais auxiliares, equipe de saúde nas escolas e cursos para toda a comunidade escolar. Muito obrigada.”
Milhares de mensagens chegaram, e Mari nem quis saber. Seu marido queria conversar. Estava muito triste com o ocorrido, mas não poderia perder o camarote com tudo incluído em pleno domingo de carnaval de Salvador. Já que ela não queria mais sair, ele daria o outro ingresso a Pedrão. Ela fez um gesto de “vá e saia da minha frente”. Meia hora depois, a campanhia tocou, Marina abriu a porta e respondeu a Maciel na força do ódio:
– Me deixa em paz, pega logo o que esqueceu que eu quero ficar sozinha!
Maciel gritou “podem vir” e apareceram mais de trinta professoras, dentre amigas da faculdade e colegas da escola Santa Luzia, todas fantasiadas e com um dos olhos maquiados com glitter. Rafaela fez a mesma maquiagem no olho de Mari, enquanto Maciel levava toda carne do churrasco ao quintal, explicando que vendeu os ingressos do camarote no dia anterior. Entre marchinhas, pães de alho, linguiças, asinhas, cortes de coração da alcatra e passinhos animados, as professoras terminaram a noite gritando Alcione no karaokê.
Por isso que Mari estava chorando de felicidade no retorno às aulas. Do nada chega Miguel na porta da sala das professoras levado por uma auxiliar:
– Professora, na moral, como eu faço pra controlar a minha reiva? Eu não consigo me segurar!
– Meu benzinho, tente sempre se controlar. Mas, se não conseguir, descarregue a raiva quebrando um lápis e me avise, eu tento te ajudar. Também vamos ter a visita todo mês de duas pessoas legais pra você dizer tudo que sente. Combinado?
– Tá de boa, minha benzona!
Depois de dois anos, Miguel já quebrou 46 lápis, 12 canetas, torceu o pé chutando o freezer da cantina e venceu duas vezes as Olimpíadas de Matemática da escola. E só bateu uma única vez num coleguinha que chamou a professora Marina de ridícula.
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Esta é uma história de ficção, mas bem que poderia ser verdade. Acompanhe os textos, músicas e vídeos da Fabuloso Cotidiano, uma criação de Bruno D’Almeida, onde pessoas simples fazem incríveis todos os dias. Participe da rede de apoio e contribua com a produção de material didático gratuito.
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